Prólogo
O corpo tem um peso inigualável na vida em sociedade. A forma física que habitamos é nosso principal tema de estudo científico, o maior bem para o contexto antropocêntrico, a casa da alma do ponto de vista religioso, a única coisa que garante nossa existência do ponto de vista biológico. A forma como esse corpo existe, se porta e é percebido pelo outro é um dos maiores indicativos de como funciona a sociedade em que está inserido. Classificamos épocas pelas mudanças que acontecem com esses corpos, com a cor da pele deles, sua forma, seu sexo, a moda, a manifestação cultural. Diferenciamos etnias e povos com base naquilo que elas fazem com seus corpos, se o cobrem, o mostram, o marcam, o escondem – o corpo é invariavelmente um simulacro da sociedade que o molda.
Com os corpos LGBTQ+ não é diferente. Ter o seu corpo percebido como desviante, adorná-lo como manifestação de orgulho para a sua identidade sempre foi um ato político. “Parecer gay” sempre foi aproximar-se de comportamentos femininos. Fugir do padrão de gênero e consequentemente ser visto como sexualmente indecente vem com uma carga física e emocional brutal, que desde o início do movimento “GLS” fez com que a luta desses corpos se aproximasse do movimento negro, do movimento feminista. O que tem em comum, afinal, os LGBTQs, os negros, os amarelos, os indígenas, os latinos, as pessoas com deficiência, os gordos e as mulheres? Todos nós temos nossa experiência social e de vida moldada pelo nosso corpo, por como ele se parece, por como ele é diferente de como um corpo humano padrão, de classe dominante, deveria parecer-se. Nós somos vítimas de violência, desumanizados, execrados apenas por sermos, por existirmos e não nos escondermos. Disforia pode ser, por definição, várias coisas. Pode ser “uma mudança repentina e transitória do estado de ânimo”, ou “um mal-estar psíquico acompanhado por sentimentos depressivos”, mas, mais importante, pode ser “uma manifesta insatisfação e inconformidade com a anatomia sexual de nascimento e o papel social que dela se espera”. É dessa última que ambos os textos trataremos, e, mais importante, das razões pelas quais ela se manifesta e das formas que podemos lidar com ela enquanto corpos LGBTQ+ socialmente presentes.
Feminilidade,
Mulher e
Lesbianidade
Feminilidade soa como algo oriundo de fêmea – o sufixo “idade” indica qualidade ou condição, e é comum que pensemos que o que é feminino é tudo aquilo inerente à fêmea, quando, na verdade, a feminilidade é uma condição imposta. Não é necessário citar Simone de Beauvoir para sabermos que ser mulher é ser marcada pelas insígnias sociais de gênero, do gênero mais fraco, mas é necessário citar Judith Butler e sua teoria de gênero como performance para entendermos o que é se sentir disfórica enquanto mulher – e lésbica – na sociedade contemporânea.
Para Butler, o conceito de gênero é performático, de forma que o gênero de uma pessoa é definido não por um fator biológico – pois é diferente do conceito de sexo –, ou por um fator cultural, mas sim por um fator identitário, em conformidade com um conjunto de ações que define a percepção social do indivíduo que o performa. Em resumo, gênero não é uma característica inata, sexual ou física, mas sim uma espécie de teatro social, que pode assumir diversas faces, ser mutável, inexistente ou múltiplo.
Porém, é justo chamar de performance aquilo que não é uma escolha? A imposição social da feminilidade sobre meninas e mulheres é mais violenta do que isso, envolve mutilação física, coerção moral, monetária, entre outras coisas. A violência não é exatamente performática, mas bastante material e totalmente imposta, visto que mulheres são submetidas a ela logo ao nascer, seja por terem suas orelhas furadas até terem suas vulvas cortadas, serem jogadas fora, vendidas, comercializadas, ou terem seus membros amarrados para se adequarem a um padrão de beleza – tudo isso antes mesmo de aprenderem a se comunicar ou poder escolher performar qualquer coisa.
É bastante compreensível que o pensamento de culpabilização seja o mais disseminado dentro da sociedade contemporânea individualista, pois torna-se confortável responsabilizar o indivíduo pelas violências que sofre, vender a ele artifícios para se conformar com o sofrimento ou remediá-lo e transformar questões de violência e saúde pública em gosto e opinião pessoal. É lucrativo e interessante convencer mulheres de que é possível se identificar com exploração sexual, mutilação dos nossos corpos e padrões de beleza pedófilos, porque eles vêm em uma embalagem cor de rosa – e chamar isso de conformidade de gênero, ou ainda, de empoderamento feminino, de “meu corpo, minhas regras” – e dizer que, com certeza, o feminismo existe para que você possa afirmar que raspar as pernas é um direito e não uma imposição. É estatístico que mulheres são economicamente mais vulneráveis que homens, que são sexualizadas, objetificadas, e isso é um consenso dentro do debate feminista, certo? Porém, por que não olhamos para a socialização feminina com um olhar crítico e colocamos de fato a culpa nesses ritos sociais de generificação do corpo feminino? Mulheres são economicamente vulneráveis porque, além de ganhar menos que homens, são obrigadas a arcar com gastos adicionais com maquiagem, cosméticos, depilação, cabelo, unhas, roupas. Mulheres são sexualmente vulneráveis, mas são ensinadas a gostar de roupas de fácil acesso para homens como saias e vestidos, a usar sapatos que restringem sua movimentação e a impedem de fugir, manter unhas longas para que suas habilidades motoras sejam prejudicadas, longos cabelos fáceis de serem agarrados. Tudo que é associado ao ser feminino foi milimetricamente construído por homens para fragilizar mulheres, para nos distrair, nos sexualizar, nos vulnerabilizar. Não há nada no que conhecemos como “performance de feminilidade” que exista com um propósito abstrato de gosto, para atender a um conceito puro de beleza, um conceito transcendental de gosto ou de expressão. Todas essas coisas existem, primeiro, como arma para violentar mulheres e explicitar sua situação sexual, existem como lembretes visuais de como essa pessoa que os carrega deve ser tratada: explorada, estuprada, violentada, subjugada. E é por isso que mulheres que se recusam a carregar essas insígnias (sapatonas, em sua grande maioria) incomodam tanto as normas vigentes de gênero.
Sophia Donadelli e Thaiane Veloso
Foto por Lucas Silvestre
Direção de arte por Lucas Truta
Não cabe na lógica do gênero performático, do gênero enquanto escolha, que uma pessoa não se identifique com nenhuma dessas violências e, ainda assim, seja uma mulher. Não faz sentido para a ideologia vigente de funcionamento de gênero que uma mulher não goste de nenhuma dessas coisas que permeiam o campo fabricado de “feminilidade” e, ainda assim, seja uma mulher. Desde as coisas mais básicas e visuais e, sim, realmente, até certo ponto, performáticas, como vestimenta, cabelo, passando por aquelas sociais mais engenhosas que nos amarram de formas mais sutis, como comportamento, tom de voz, posição hierárquica, poder econômico, autoestima e até aquelas mais estratificadas e intocadas como a heteronormatividade, a mulher que não serve ao homem de maneira alguma é absolutamente incompreensível para a sociedade. É percebida como não-humana aquela pessoa, mulher, que não se parece com uma mulher, que não se comporta como uma mulher deveria se comportar, não pensa como uma mulher deveria pensar e não está sexualmente disponível para homens ou para seus fetiches, como uma mulher deveria estar, uma vez que só se relaciona com outras mulheres. Logo, tentam colocá-la em um patamar de “masculinidade”, tentam aproximá-la do macho e dos comportamentos sexuais predatórios masculinos, violentos, mas a mulher sapatona, essa mulher que nega veementemente a feminilidade, diferente do homem, não é predatória. Não tem interesse na feminilidade, e, sim, em mulheres. Outra coisa absolutamente incompreendida pelo homem: amar mulheres para além de sua utilidade sexual, de serventia ou de sua função decorativa. A mulher radicalmente sapatona é a maior afronta ao patriarcado.
Como uma mulher que ama outras mulheres – ou qualquer mulher – deve se identificar com violência e heteronormatividade apenas por um motivo estético? A mulher sapatona já se encontra disfórica no ato de existir – e é obrigada a escolher entre dois caminhos: o de tentar se encaixar ou se rebelar. Ambos são extremamente violentos e hostis. A mulher lésbica que se parece mais com aquilo que a sociedade heteronormativa patriarcal imaginou de uma mulher com certeza vai ser mais aceita, mesmo que jamais por completo, sendo muitas vezes forçada a mimicar relações heterossexuais dentro da sua realidade. A disforia se manifesta, porém, com mais evidência, talvez, naquela que é “menos adaptável” à violência e consegue perceber com clareza o estrago feito pelas imposições da demarcação de gênero – e está fadada a ser percebida como “masculina”.
Masculinidade, diferente da feminilidade, não é performática. Tudo que é inato do ser humano foi atribuído à masculinidade, de maneira que tudo o que não é artificial, infantilizado, fabricado é masculino. Pelos pubianos são sinal de “virilidade” apenas para que o característico da testosterona seja visto como superior, para que o “feminino” tenha que se afastar disso ao máximo. Suor, pelos, “mau cheiro”, roupas confortáveis, cabelos práticos – tudo que chamamos de masculino é, simplesmente, aquilo que é humano. Existem, claro, sintomas da masculinidade tóxica e comportamentos que foram instituídos pelo patriarcado e classificados como masculinos, como a violência sexual, a agressão e o poder, mas todas essas são ações não-performáticas e materiais, que fazem parte do sistema de dominação direta do homem sobre a mulher, da mesma forma que ser uma vítima é considerado feminino e não é performático, é material e oriundo do contato com o homem e não como existência individual em si – logo, irrelevante para o ideário da identificação e da individualização da experiência de gênero. Mulheres lésbicas que não se identificam com a feminilidade, tidas como “masculinas”, não deixam de ser mulheres e, portanto, vítimas da violência. Não cabem, tampouco, na caixinha da masculinidade e sentem-se, novamente, disfóricas.
Mulheres que não estão em conformidade com as normas heterossexistas e de gênero estão fadadas a sofrerem com a disforia no sentido de que estarão, enquanto indivíduos, desprovidas de referenciais com os quais possam se identificar. Essas lésbicas estão em um limbo (aquele que o homem hétero é incapaz de conceber, logo, é incapaz de permitir) e vêem a própria existência como um grande confronto, um grande erro, uma coisa que não é nem isso e nem aquilo – quando, na verdade, são apenas mulheres, mulheres que amam outras mulheres e merecem existir e serem reconhecidas, talvez mulheres que têm sua individualidade politizada contra sua vontade, mas que são extremamente necessárias para a desconstrução do ideário de mulher como feminilidade. São mulheres diariamente feridas por essa feminilidade, mulheres que, ao não se conformarem com ela, colocam em risco suas famílias, suas relações, seus empregos, e ainda tem que ouvir que querem tornar-se homens, pois tornar-se homem é, subliminarmente, tornar-se humano, tornar-se visível e reconhecível. Tornar-se homem é poder amar mulheres sem julgamentos, também.
É natural que muitas simplesmente não consigam conceber que sua humanidade seja retirada apenas por serem mulheres e que, por causa disso, tenham que se submeter a processos humilhantes. É natural que essas mulheres neguem isso. O que não é natural é forçá-las a se encaixar em padrões de masculinidade, de heterossexualidade, e tentar curar sua sensação de não pertencimento fazendo-as passar por estupros corretivos, mutilação, terapias psicológicas, doutrinação, obrigando-as que usem sapatos de salto alto em seus empregos para que não morram de fome ou as coagindo com violência a se comportarem de maneira submissa para que possam ser reconhecidas como mulheres.
A disforia de mulheres lésbicas não-femininas é cruel, visto que é irreparável. Nenhuma mulher que percebe a quem serve a feminilidade se identifica com aquilo, muito menos com a masculinidade tóxica. A disforia de mulheres lésbicas não-femininas só pode ser acalentada no convívio com outras mulheres lésbicas não-femininas e na validação da expressão da mulher desassociada da feminilidade, da normalização da existência do gênero feminino completamente desassociado do homem (e, abarcando um pouco a ideologia da individualização, se aceitando sem a obrigação de se encaixar e se percebendo como válida, como mulher). A existência de sapatonas é política, é de resistência contra o patriarcado, contra a misoginia, mas é, principalmente, humana.
*Texto publicado originalmente na Edição #03
da Fearless Magazine, em agosto de 2018
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