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Giovana Macedo

Existe Pornografia Lésbica e feminista?

Atualizado: 22 de set. de 2020

Pornografia é cada vez menos um tabu. Feminismo, democratização da internet, libertação sexual das mulheres em alta, popularização da educação sexual, liberalismo. Quem quer que seja o responsável, o fato é que a pornografia nos últimos dez anos experienciou um crescimento absurdo, e o PornHub, plataforma mais popular de pornografia gratuita, está em 38º lugar dos sites mais acessados do mundo. O número crescente de usuários, o aumento de visitantes mulheres e a quantidade absurda de diferentes portais de pornografia gratuita e paga nada mais são do que um reflexo dos esforços e investimentos milionários de uma indústria que movimenta anualmente 6,7 bilhões de dólares nos EUA somente com pornografia online. Além dos vídeos online, a indústria pornográfica conta com lucros de convenções, eventos e principalmente prostituição e tráfico de drogas. A pornografia dita como “heterossexual” é considerada a mais perigosa. Existem inúmeros artigos, pesquisas e documentários que falam sobre como esses vídeos de irrestrito acesso são perigosos para a dessensibilização de seus consumidores para violência, como o vício em pornografia compromete casamentos heterossexuais, empregos, como diminui drasticamente a expectativa de vida das mulheres envolvidas na produção desses vídeos, contém mais cenas com agressão física e verbal do que sem, como destrói as vidas de homens, mulheres e crianças.


Existe Pornografia Lésbica e Feminista? - Colagem por Raquel Cutin

É muito fácil para a população LGBTQ ler essas estatísticas e não sentir nada – nenhuma culpa, nenhuma relação – afinal, esses vídeos são sobre heterossexuais, são eles que estão consumindo isso, produzindo isso e a culpa é da própria heteronormatividade tóxica e patriarcal, o meu pornô não tem nada a ver com isso, certo? Bem, não exatamente. No ano de 2017, a categoria “lesbian” foi a mais procurada nos sites de pornografia em todo o mundo. A fetichização do sexo lésbico não é nenhuma novidade, dentro ou fora da pornografia, o desejo masculino sobre relações entre mulheres é histórico e esteve presente no imaginário da sociedade desde o início do patriarcado. Outra coisa histórica, e tão antiga quanto a fetichização, é a lesbofobia. A igreja, os homens, todos os grupos que perseguiam as mulheres, perseguiam as lésbicas, pois é impossível cercear a liberdade sexual da mulher sem impedi-la de relacionar-se com outras mulheres. Não é de se espantar, de fato, que as relações que mais machucam o patriarcado sejam as mais objetificadas por ele, especialmente se essa dinâmica é colocada em uma indústria que torna violência sinônimo de sexo. O que é espantoso, na realidade, é o aumento da procura de mulheres por esse tipo de fetichização, e o dado de que as mulheres procuram 197% mais por pornografia lésbica do que homens. O aumento da procura de mulheres por pornografia lésbica pode ser explicado por diversas óticas. Algumas pessoas dizem que o interesse feminino nesse gênero pornográfico se dá por conta de tanta violência presente nas cenas heterossexuais, por ser menos agressivo, mais romântico… mas isso tudo se baseia em uma visão romantizada e pouco realista do que a pornografia lésbica – e a pornografia, em geral – realmente é e como ela se parece. Outras pessoas também dizem que, na verdade, a parcela de mulheres que acessa sites pornográficos é constituída majoritariamente por lésbicas, e que elas estão, na verdade, procurando educação sexual, assim como os homens comprovadamente fazem com a pornografia heterossexual. No caso deles, o uso da pornografia como educação sexual gerou danos sociais irreparáveis tão severos que médicos nos EUA precisaram se manifestar contra a pornografia, pois, segundo eles, a pornografia está intrinsecamente ligada com a alta alarmante no número de mulheres com prolapso retal, destruição dos músculos da vagina, fraturas intestinais causadas por inserções absurdas e com fraturas em seus ânus e vaginas nos últimos 10 anos. Sendo a pornografia lésbica a mais assistida no mundo, é de se esperar que, se mulheres lésbicas se educarem por essa mesma fonte, o resultado será, no mínimo, semelhante. Existem correntes que defendem que os maiores problemas da pornografia lésbica e hétero é a falta de representatividade. Segundo elas, o pornô não representa corpos diversos o suficiente, não é inclusivo. Colabora com padrões de beleza inalcançáveis para mulheres. É uma indústria que deveria pagar igualmente seus performers masculinos e femininos! Não tem diretoras mulheres o suficiente, sabe? O problema é que todas essas pautas ignoram que o problema não é nada disso – não é a ausência de feminismo na pornografia, e sim, a existência desse tipo de comercialização dos corpos femininos. Gloria Steinem disse que “Qualquer que seja o gênero dos participantes, toda pornografia é uma imitação do paradigma masculino-feminino, conquistador-vítima, e praticamente todo conteúdo pornográfico apresenta ou implica mulheres escravizadas e mestres.” O fato de que mulheres representam uma parcela da sociedade economicamente vulnerável torna impossível fugir da exploração econômica, e também torna falsa qualquer liberdade. Não existe consentimento comprado. Atrizes pornô não querem fazer sexo. elas querem dinheiro. Logo, aceitar participar de uma produção pornô não é consentimento se você está sendo monetariamente coagida a fazer aquilo, ou ameaçada pelo seu agente, pelo seu cafetão. Tendo isso em mente, é fácil deduzir que a maioria da pornografia lésbica é produzida por mulheres heterossexuais. Mas não é necessário deduzir, a ex-atriz pornô Vanessa Belmont, por exemplo, já contou como cenas “lésbicas” de pornografia são dirigidas por homens, produzidas por homens, contém homens no set ameaçando as mulheres, e mulheres que sentem prazer em machucar outras mulheres como forma de estabelecer dominância. Mas as produtoras masculinistas violentas e cheias de homens não são as únicas! Existem produtoras que se dizem feministas, sex-positive, oferecem pagamentos iguais para seus atores, são dirigidas por lesbicas! Como podem essas produtoras, premiadas pelo Feminist Porn Awards, serem perigosas para mulheres? Como elas podem não ser eficientes ferramentas de educação sexual para jovens mulheres? Para abordar essas perguntas, eu vou retomar a inexistência do consentimento comprado. Lutadores de UFC, por exemplo, não gostam de apanhar, eles gostam do dinheiro. Alguns gostam dos treinos, de se exercitarem, talvez até da luta – mas nenhum deles gosta da dor. Nenhum lutador de UFC participaria de uma luta completamente gratuita na qual ele soubesse que ia apanhar mais do que bater, fosse cuspido, urinado, ridicularizado por seu oponente. Da mesma maneira, atrizes pornô não se submeteriam a isso de graça. Pornografia não é sexo. E, também, misturando as duas situações, lutadoras do Ultimate Surrender não estuprariam umas às outras se não fosse pelo dinheiro. Ultimate Surrender é uma das produções dirigidas por uma mulher de pornografia exclusivamente feminina e consiste em uma luta na qual as participantes recebem pontos por performar ações sexuais indesejadas umas nas outras, e ganha aquela que fizer mais pontos ou forçar a outra a ter um orgasmo completamente contra sua vontade. A perdedora, em um “último round” recebe uma punição da ganhadora usando um strap-on. Isso é sexo? Não, mas é pornografia. Pornografia vem sendo cada vez menos sobre sexo e mais sobre violência.


Existem, claro, contratos diversos que garantem que as produtoras não podem ser consideradas responsáveis por qualquer violência praticada no set, garantindo que as atrizes estão lá por livre e espontânea vontade, que aquilo é tudo consensual. Garantir um local mais humanizado, na qual as pessoas envolvidas recebam o mesmo pagamento, tem “liberdade” para dizer se estão desconfortáveis, um casting variado… todas essas coisas são maneiras de remediar um problema maior. Todas essas coisas tornam algumas produções pornográficas lésbicas menos violentas e excludentes que as outras, mas ambas partilham a exploração sexual de mulheres, o lucro baseado inteiramente no corpo feminino nu, sendo usado, exposto, vendido. A comercialização disso representa uma chaga social muito maior do que a pornografia em si, mas, se pudermos não colaborar com isso, retomar nosso poder sobre nossos corpos e aprendermos sexualidade, segurança e saúde sexual de maneira saudável, já estaremos fazendo algo para parar isso. Companhias extremamente lucrativas e que nos exploram sempre dão um jeito de cooptar movimentos sociais, e a pornografia com roupagem feminista, lésbica, inclusiva não é diferente – mas não podemos nos enganar, pornografia lésbica não tem nada de feminista.

*Texto publicado originalmente na Edição #03

da Fearless Magazine, em agosto de 2018

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