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Monique Lemos

MULHERES NEGRAS E A CENSURA DA VIDA

É necessário, logo de início, lembrar a importância de se falar sobre, pois há intencionalidade na quantidade de material que temos disponível sobre mulheres negras na ditadura: pouco, muito pouco. Portanto, retornar ao tema é sempre criar corpo à necessidade de punição às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado, é importante desvendar esse período da história e abrirmos os olhos, pois a distância de lá para onde estamos, neste caso, é apenas temporal.


CONTEXTO


Naquele período, o discurso da democracia racial fazia parte da ideologia de Estado, um dos eixos de integração nacional autoritária retomado por Vargas durante a Ditadura Militar, alegava–se, por exemplo, que a racialização das desigualdades no Brasil e as pautas do movimento negro eram antinacionalistas. Por meio do Itamaraty, impediram que intelectuais negros saíssem do país ou que participassem de encontros, tais como Clóvis Moura, Abdias do Nascimento. Houve também uma forte ruptura na produção científica, diversos professores foram aposentados de maneira compulsória, entre eles Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, figuras centrais no estudo sobre relações raciais e o pensamento social brasileiro.


A própria esquerda brasileira colaborou com as práticas racistas, uma vez que não considerou a questão de raça um elemento central em sua resistência na ideia de construção de um país democrático, a luta de classes sempre foi o eixo central. Apesar da questão de classe ser estrutural para a luta anticapitalista, a questão racial não pode ocupar uma posição lateral. O Brasil foi o último a abolir a escravidão, foi o país que mais sequestrou negros da África e onde a abolição foi um pacto político–econômico, sem a inclusão da população negra na sociedade¹.


Uma questão apontada por Amelinha Teles, é a de que “foi vendo o posicionamento enfático das estudantes que ela também decidiu se impor mais e incluir informações sobre questões femininas no jornal que ajudava a escrever para o Partido Comunista do Brasil, o PCB”. No entanto, lembra, uma parcela importante das mulheres não era tratada devidamente dentro do próprio debate feminista: as mulheres negras. As palavras de Angela Davis, feminista americana que militou também no grupo Panteras Negras, ainda não haviam chegado ao Brasil. O livro “Mulheres, Raça e Classe” de Angela Davis, por exemplo, lançado em 1981, só foi publicado em português em 2016.


Colagem por Victor Reis

CAMPO CULTURAL


As velhas teorias da mestiçagem e a ideologia da democracia racial começaram a ser duramente criticadas por intelectuais, artistas e agitadores culturais. No mundo acadêmico, sociólogos como Florestan Fernandes desenvolveram críticas sofisticadas e aprofundadas à ideia de “democracia racial”, demonstrando como os negros foram integrados à sociedade industrial e urbana, com a manutenção da uma situação de dupla exclusão: social e racial ¹.


No samba, ocorreu um processo de valorização das raízes negras e africanas, ainda que o gênero fosse o símbolo maior de brasilidade. No final dos anos 60 e início dos anos 10, na explosão da “black music”, artistas como Tim Maia e Toni Tornado colocaram em pauta explicitamente a questão da luta contra a discriminação. No ano de 1974, em Salvador, o bloco Ilê Aiyê surgiu com a proposta de celebrar o carnaval sem esquecer o protesto contra o racismo, cantando, em vozes femininas, “é o mundo negro, que viemos mostrar pra você”. Nas periferias, também surgia uma nova consciência cujo foco era a valorização da “identidade racial” e a percepção do preconceito explícito ou disfarçado que marcava a sociedade brasileira.


É em 1977, seguindo a cronologia de Machado de Assis, Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus,que nasce uma das principais expressões literárias brasileiras: os Cadernos Negros, que em 2018 chegou a marca dos 41 anos ininterruptos, com a publicação de nomes consagrados e pouco conhecidos pelo grande público, como Cuti, Esmeralda Ribeiro, Oswaldo de Camargo e Miriam Alves. Figuras que passam a traçar estratégias para a existência de um movimento negro enquanto ator político importante no cenário nacional. Um movimento que ocupa lugares estratégicos na sociedade, caso das instituições públicas de ensino superior, organizações políticas consistentes e poder de influência na esfera pública.


CAMPO POLÍTICO


As mulheres negras, ao se engajarem na organização de movimentos políticos, são personagens em ruptura total com as funções que lhes foram atribuídas, que se insurgem contra a ordem estabelecida e que lutam para defender seus ideais e fazer ouvir suas reivindicações. Nesse período, muitas militantes tiveram suas primeiras experiências políticas nos partidos de esquerda, já outras iniciaram suas trajetórias no movimento feminista, assim como no movimento negro. Esses grupos, constituídos em um contexto autoritário, lutavam pelos direitos civis, pela liberdade política e contra as desigualdades sociais.


A eclosão do feminismo na década de 70 entre as militantes dos movimentos de esquerda tinha como objetivo principal a luta pela democracia e contra o regime ditatorial. Por um lado, as mulheres lutavam pela anistia, pelas eleições livres e diretas, pela abertura dos espaços políticos tradicionais, por outro, elas privilegiavam ações que visavam a melhoria nas suas condições de vida. A importante participação das mulheres nos movimentos de oposição suscitou um debate sobre a discriminação e a subordinação das mulheres, bem como, encorajou a sua participação nas produções científicas e nas ações políticas. No Brasil, os estudos sobre a mulher se apresentaram ainda na década de 1970. Heleieth Saffioti defendeu em 1967, sob orientação do professor Florestan Fernandes, a tese intitulada A Mulher na Sociedade de Classe: Mito e Realidade, publicada pela Editora Vozes, em 1976. O livro foi um best–seller na época.


Colagem por Victor Reis

Contudo, durante os anos 70 a 80, mulheres negras, índias, pobres e trabalhadoras, consideraram que a pauta política não as incluía, ocasionando inúmeras críticas em relação à categoria “mulher” como universal. A noção de trabalho fora do lar e de carreira, defendida por Betty Friedan, no livro Mística Feminina, não significava para elas uma forma de “libertação”, pois essas mulheres sempre trabalharam dentro e fora do lar, por exemplo. Assim, não era mais possível analisar somente uma única condição feminina, uma vez que existem diversas “mulheres”, múltiplas identidades e inúmeras diferenças, não apenas de classe, mas regionais, geracionais, de raça, orientação sexual, religião.


Em 1975, durante o Congresso de Mulheres Brasileiras, houve a apresentação do Manifesto das Mulheres Negras representando o primeiro debate sobre as divisões raciais dentro do movimento feminista brasileiro. Depois de 1985, uma das principais reivindicações do movimento de mulheres negras ainda era a construção de uma identidade feminina negra.


Em 1978, figuras como Milton Barbosa, Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso fundam uma das experiências mais bem sucedidas na luta contra o racismo: o MNU – Movimento Negro Unificado. Fundado num ato público com 2 mil pessoas, no dia 7 de julho, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato era uma resposta à discriminação sofrida por quatro jovens atletas negros num clube esportivo de São Paulo, além de outros eventos de violência policial. Com diversidade política interna, o MNU passa a pautar a luta contra o capitalismo e o status quo no Brasil a partir de uma perspectiva que considerasse os fundamentos de raça e classe.

Além disso, o MNU encampou as lutas específicas das mulheres negras, duplamente discriminadas, por serem negras e mulheres, numa sociedade racista e machista. A idealização das raízes africanas, vistas em seu conjunto sem se preocupar com as etnias ou nacionalidades do continente, o Pan–Africanismo e a necessidade de se conectar com outros movimentos negros ao redor do mundo davam o tom da luta do MNU.


É necessário pontuar o surgimento também do FECONEZU, Festival Comunitário Negro Zumbi e em 1978, a reivindicação do Grupo Palmares, desde 1971, pela adoção do 20 de Novembro como data da comunidade negra e não o 13 de Maio, data carregada de paternalismo por exaltar uma suposta bondade da princesa Isabel.


Estes movimentos, ao colocarem em suas agendas as denúncias de racismo institucional, de racismo à moda brasileira e da farsa da democracia racial, demarcaram um campo de força política imprescindível na conquista por direitos civis, políticos e materiais. A contribuição política deste e dos demais movimentos, de diferentes correntes e tendências, foi a construção de políticas afirmativas e de valorização da população negra². Mais do que isso, é preciso destacar que se o capitalismo no Brasil e a estrutura de dominação foram criados sob os pilares de raça, gênero e classe, é necessário que exista um olhar sobre a história que respeite esses fundamentos.


Haroldo Costa, na obra Fala Crioulo, já alertava: “cada vez que há um endurecimento, um fechamento político, o negro é atingido diretamente porque todas as suas reivindicações particulares, a exposição de suas ânsias, a valorização de sua história, desde que não sejam feitas segundo os ditames oficiais, cheiram à contestação subversiva”³. Sob todas as circunstâncias, seguimos em resistência.


*Texto publicado originalmente na Edição #04

da Fearless Magazine, em maio de 2018

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