Artistas sempre refletem em suas obras sua relação com o mundo que os cerca. Desde a pintura renascentista até o ready made, a forma do artista de se relacionar com o seu momento histórico e sua experiência de vida invariavelmente reverberam em seu trabalho. Seja essa relação política, como foi com os artistas do dadaísmo, ou emocional, como foi com os artistas do romantismo, a experiência de vida daquele que faz arte está sempre impregnada em seu trabalho como uma impressão digital. Filósofos da arte contemporânea defendem, inclusive, que o artista é um filtro e a arte é a realidade filtrada por este indivíduo, não apenas uma representação de seu tempo, mas uma sublimação da realidade pelo artista. Desta forma, um artista não precisa pintar um homem chorando para propor uma experiência de reflexão sobre a tristeza – a arte é muito mais subjetiva que isso, e, no século XXI, após a popularização da fotografia, a influência da pop art, é cada vez menos interessante que o artista seja naturalista, e filósofos da arte contemporânea como Herbert Marcuse defendem que a beleza da arte reside na sua capacidade de transfiguração, aonde a forma se torna conteúdo e não por uma representação “verdadeira” ou “correta” do real. Por que então se espera de artistas LGBTQ+ que produzam arte explicitamente sobre sexualidade e gênero para que essas questões sejam colocadas em pauta? Por que quando são organizadas exposições que abordam sexualidade só se colocam obras diretas, explícitas, que são praticamente retratos de um estereótipo de sexo que se criou no imaginário coletivo? E, por que ainda, muitas dessas obras são feitas pelas mãos de artistas homens heterossexuais e cisgêneros? Da mesma forma que ninguém colocaria numa exposição cubista um pintor renascentista, ainda que ele falasse sobre formas geométricas, ou colocaria uma obra que falasse o universo onírico em uma exposição pensada sobre materialismo, os curadores não podem colocar artistas heterossexuais para falar de homossexualidade. Não se pode colocar homens para falar de gênero. Por mais que hoje exista o questionamento da organização expográfica estratificada, separatista e categorizadora, o máximo que podemos estabelecer entre esse tipo de obra e a vivência GBTQ é um diálogo, mas é essencial que, politicamente, a arte pare de utilizá-las como forma de representatividade e educação sobre vivências de sexualidades não normativas. Ser artista é ter em toda obra sua um resíduo seu. Seja esse resíduo gráfico, seja conceitual, ele existe. Algumas vivências tem a sua marca tão constante na arte, que artistas como Jeff Koons, Sol Lewitt, etc. nunca tem seus trabalhos relacionados à elas, é como se fossem irrelevantes. Mas essa constância também é a mesma que faz com que se pressuponha que toda obra de arte é feita por um homem branco heterossexual até que se analise-a de perto. Se um mictório foi capaz de falar sobre arte usando deste mesmo mecanismo, esse reflexo, dessa impregnação de contexto e vivência, um desenho gestual é mais do que capaz de falar de gênero e sexualidade.
No Brasil, não é possível falar de exposição LGBTQ sem falar de artistas cisgêneros heterossexuais dentro do espaço expositivo. Queermuseum contou com inúmeros trabalhos de pessoas heterossexuais exotizando a sexualidade não-heteronormativa. A exposição Histórias da Sexualidade conta com obras de Picasso e é incapaz de falar de sexualidade e gênero sem erotizar essas práticas. É comum, entretanto, que, sendo uma pessoa heterossexual, se relacione sexualidade a erotização. Quando sua sexualidade não interfere em todos os aspectos sociais e políticos da sua vida é comum que reste apenas o aspecto erótico. Porém, ser queer hoje no brasil afeta a forma como as pessoas vivem. Afeta as vidas dessas pessoas desde o momento que acordam até quando se deitam. Afeta sua vida profissional, sua relação com a família, as colocam em situação de constante perigo nas ruas. Afeta, invariavelmente, sua arte. A artista Zoe Leonard, quando questionada sobre a sua produção artística enquanto mulher lésbica, disse, em 1994, “Eu faço trabalhos sobre o que está em minha mente. Sobre aquilo que me perturba, me excita ou me confunde. Meus medos, meus desejos. Isso é fotografia, eu aponto a minha câmera para algo que me interessa. E então eu mostro pra você. Você literalmente vê o meu ponto de vista. Você vê aquilo que me move, me assusta, me enoja. Pouco do meu trabalho é sobre amor – pelo menos por enquanto – ou sexo. Mas, sendo sapatão e sendo uma mulher me formou, formou a minha perspectiva. Eles não foram os únicos elementos, mas eles são os que percorreram tudo em minha vida. Algumas coisas continuam acontecendo por causa desses fatos. Eu fico afim de mulheres, eu sou frequentemente assediada. Eu passo tempo com um monte de outras sapatonas e viados. Eu tenho medo de sofrer violência lesbofóbica. Eu tenho medo de ser estuprada. Eu tenho raiva por que tantos amigos meus morreram de AIDS. Eles – nós – fomos proibidos, por exemplo, de usar a palavra ‘lover’ no obituário deles do New York Times. Essas coisas vão se acumulando. Eu tive que me assumir. Nenhuma pessoa heterossexual entende sobre se assumir. Eu tive que encontrar um desejo dentro de mim e segui-lo, mesmo que ele fosse contrário a todos os padrões sociais à minha volta. Esse processo de descoberta, examinação e confiança no meu próprio desejo é um processo de formação. Eu já estava transando com mulheres, mas descobrir meu sexo e escolher me assumir foi o que me tornou sapatão. Então, meu sexo é parte de quem eu sou, de como eu sou tratada, de como eu trato os outros. Ele se desenvolveu paralelo a outras influências. Ser queer formou parcialmente a minha visão de mundo. E a minha visão de mundo está sempre no meu trabalho, até mesmo quando o assunto dele não é sexo.” Vinte e quatro anos depois, ainda estamos esperando de artistas LGBTQ que seu trabalho seja sobre sexo e seja explícito para que seja representativo. Vinte e quatro anos depois e vemos esses artistas sendo obrigados a reduzir seu trabalho a isso para serem considerados parte da comunidade. Ainda vemos vivências sendo apagadas e a sexualidade de artistas sendo omitida, como se fosse possível separar o artista da obra e torná-la algo independente e distante da condição daquele que a criou, como se o resíduo da autoria fosse apagável quando é lésbico, gay, bissexual, transgênero, queer. Mesmo nessa realidade, temos hoje artistas que produzem trabalhos magníficos, conceituais, materiais ou performáticos, que merecem visibilidade e deveriam fazer parte do que é considerado hoje como “representatividade” na arte, ou, “arte queer”, mesmo sem um corpo de trabalho explícito, militante ou sequer facilmente identificável como não heterossexual. Não apenas na vida, mas também na arte, existir enquanto indivíduo LGBTQ+ é político. Ser um artista queer é político e já é – por si só – revolucionário, tornando assim, toda a sua produção igualmente revolucionária. Entrevistei alguns artistas brasileiros, contemporâneos e LGBTQ com diferentes experiências, que trabalham em diversos campos da arte para saber suas opiniões acerca dessa reflexão: Fábio Hideki, nipobrasileiro, artista visual multimídia, que trabalha com tecnologia, videoarte e arte conceitual, 20, São Paulo; Larissa Dare, trabalha com fotografia em São Paulo capital, 25; e Fernanda Lins 26, de Recife, artista visual que trabalha principalmente pintura a óleo sobre superfícies variadas.
Qual a sua opinião acerca de artistas heterossexuais que produzem arte sobre temas LGBTQ+?
Fábio: A própria pergunta já diz tudo, eles produzem arte sobre temas LGBTQ+. Essas questões são abordadas simplesmente como um tema, fica com cara de algo jornalístico/documental, tipo a seção cultura do National Geographic só que ruim. Muitos parecem até ter uma intenção boa, fazendo projetos que tentam dar lugar de fala, mas seria melhor dar autonomia pra gente ao invés de sermos inspirações temáticas.
Larissa: Acho que nossa luta, por ser diária, sobrecarrega, entāo é sempre bom contar com uma mãozinha, seja ela heterossexual ou nāo. Creio que o mais importante seja incluir a galera LGBT nessas criações, e principalmente, ecoar suas vozes, invés de tomá-las como suas e silenciá-las.
Fernanda: Lembro de quando estava pesquisando sobre a representação de mulheres lésbicas na pintura e me deparei com a obra Le Sommeil de Courbet. É uma obra que ilustra duas mulheres nuas deitadas na cama em um momento íntimo. Já vi essa imagem reproduzida por mulheres lésbicas tantas vezes que perdi a conta. Então, a princípio achei interessante a existência dessa imagem na época, que dizem que chocou a sociedade e abriu novos caminhos para essa temática. Essa obra é sempre destacada quando se fala da representação de lésbicas na arte. Pensando que naquela época (1866), as mulheres (e, consequentemente, mulheres artistas) tinham ainda menos espaço do que hoje, então reconheci uma certa importância. Eventualmente, li mais um pouco sobre esse quadro e acabei descobrindo que ele não foi pintado porque o artista estava dentro de um contexto social de convivência com mulheres lésbicas e expressava sua realidade. Na verdade, essa obra foi encomendada por um diplomata Turco, que provavelmente tinha como fetiche as relações entre mulheres. Então, é problemático. Quando se tem um artista heterossexual abordando temas LGBT, é importante tentar compreender seu contexto, suas motivações e seus objetivos com aquela obra. Mesmo que a imagem, por si só, possa ter um impacto positivo, não podemos pensar na produção de algo sem ver todo o seu processo até chegar aos olhos do público e ao mercado de arte. Por que esses artistas estão abordando essa temática? É um interesse genuíno? É parte da expressão individual deles? Será que não é só pelo fato de que “LGBT tá na moda”? Não tenho problemas com o fato em si de uma pessoa heterossexual falar sobre homossexualidade, por exemplo. Mas precisamos avaliar melhor não apenas todo o processo de produção e as motivações do artista, temos também que pensar nessa imagem final resultante na obra. Como ela contribui com a vida das pessoas LGBT? Será que essa obra produzida por uma pessoa heterossexual, em uma exposição sobre a temática LGBT, não está ocupando o espaço de um(a) artista LGBT?
Você já sentiu cobrança para produzir trabalhos explicitamente sobre gênero e sexualidade?
Fábio: Sim, mas foi mais um misto de autocobrança e projeção de expectativas do que uma cobrança direta. Como eu trabalhava com publicidade antes eu tinha uma preocupação em me assegurar que a comunicação estava sendo feita de forma bem clara. Então quando comecei uma produção mais autoral a tendência foi tratar questões importantes de forma mais objetiva e figurativa. Mas acabava ficando uma coisa meio didática e óbvia, sem profundidade. Com o tempo fui percebendo que as linguagens que eu queria explorar demandam uma subjetividade formal maior, e que essas questões de identidade e afetividade acabam se manifestando de maneira mais orgânica no meu fazer artístico.
Larissa: Sim, e essa cobrança vem mais de dentro que de fora. Sinto que precisamos, cada vez mais registrar essas vivências, jogar pro mundo e esperar, em troca, um diálogo honesto do espectador.
Fernanda: Sim. A cobrança não necessariamente tem sido externa e direta e não houve muitas situações em que pessoas vieram me falar que eu deveria falar sobre o tema de forma mais explícita na minha obra. Porém, algumas vezes aconteceu de eu, por ser mulher lésbica, ser convidada a participar de eventos de arte com a temática de gênero ou LGBT e perguntaram se eu tinha alguma obra dentro disso. Simplesmente achei que minha obra não caberia, que não era o que queriam de mim. Porque o que essas pessoas esperam, de fato, é algo explícito, que choque, excite, que expresse lesbianidade em todas as pinceladas.
Qual a sua relação com outros artistas LGBT?
Fábio: É interessante porque a gente tem esses aspectos em comum, mas isso acaba se traduzindo na arte de formas tão distintas. Principalmente algumas pessoas mais próximas que também são artistas e daí dá pra acompanhar o processo mais de perto, e como cada um acaba se relacionando com a arte. Sempre rola uma troca de aprendizados, e um sentimento muito bom de aceitação e pertencimento.
Larissa: As pessoas com quem mais me relaciono na vida costumam ser, em sua maioria, LGBT. Tenho amigas, amigos e colegas que são artistas das mais diversas linguagens. Essas pessoas, na maioria dos casos, também não tratam a sigla LGBT como uma temática a ser explorada. Elas existem, resistem, fazem suas artes e deixam que elas reflitam quem são. Acho que uma verdadeira exposição LGBT não precisa (ou não deve) tratar a sigla como apenas uma temática, mas sim como um espaço de expressão genuína da arte feita por pessoas LGBT.
O que significa ser um artista LGBT para você?
Fábio: São duas coisas muito intrínsecas da minha identidade: Ser artista e ter essa vontade de estar explorando novas linguagens e possibilidades dentro do campo das artes; e a forma como eu me expresso, as pessoas com que eu me relaciono de maneira afetiva e sexualmente. Nesse sentido, acho que todo mundo acaba passando por um processo de autoaceitação que se transforma em normalização. E as vezes eu estou tão confortável nesse meio mais liberal, que esqueço que algo que pra mim já é normal pode causar olhares de desgosto em pessoas intolerantes. Se por um lado vem aquele desânimo, por outro saber que a minha arte pode ajudar as pessoas a verem o mundo de outra maneira é bastante motivador.
Larissa: Eu sou uma artista LGBT, mas sei de todos meus privilégios como branca, classe média e padrāo. Não posso contar muito sobre percalços porque os vivo com pouca frequência, mas gosto de contar as histórias de quem os vive em seu cotidiano.
Fernanda: Acho que a sigla (o termo) LGBT não nos qualifica necessariamente como artista, mas sim como pessoas. Não acho que pode existir uma pessoa heterossexual que seja um artista LGBT, mesmo que fale disso em sua obra. E acho que as pessoas LGBT que produzem arte, até quando não abordam diretamente o tema, podem/devem ser consideradas artistas LGBT.
Como você acha que isso se traduz no seu trabalho?
Fábio: Eu sempre tive muito interesse em processos de criação de imagem e a forma de como a sociedade se relaciona com ela. Neste sentido, ultimamente tenho explorado a questão da semelhança e do acaso. No meu trabalho isso aparece em diversas obras que usam o conjunto e a sequência como elemento significante. Então, por exemplo, numa obra recente minha, chamada “Da Sorte”, eu faço desenhos à partir de coordenadas geográficas obtidas em números de biscoitos da sorte. Acho que todo mundo já parou pra imaginar como seria a vida se tivesse nascido em outro lugar, se desse sorte e fosse parar numa região mais receptiva com as questões LGBTQ+. Ou como seria a vida num país em que demonstrações de amor entre pessoas do mesmo gênero são proibidas. Então, apesar do fator humano não se manifestar visualmente neste trabalho, creio que ela oferece pontos de acesso que permitem ao observador se relacionar com essas questões da humanidade, de como nós nos dividimos socialmente e agrupamos o que é igual por semelhança.
Larissa: Visibilidade. Eu enxergo essas pessoas porque eu existo e sou uma delas. Enquanto eu puder abarca-las em meu trabalho, eu tô bem.
Fernanda: Me identifiquei bastante com o posicionamento de Zoe Leonard, quando ela afirma que sua experiência enquanto sapatão sempre esteve presente em sua obra porque está presente em sua vida, em seu olhar. Sinto que o que eu faço é bem por aí. Meu trabalho, pelo menos até o presente momento, não fala de forma tão direta sobre a temática, mas acredito que exista uma certa subjetividade lésbica. Acho que poucas vezes o meu trabalho foi visto como arte LGBT e eu vista como artista lésbica (embora todo mundo saiba que sou lésbica). Isso sempre abre um questionamento dentro de mim, como aquela cobrança já mencionada. Será que eu não deveria falar disso mais abertamente em minha arte? Eu falo disso abertamente em minha vida. Na minha história de vida, sendo aquela criança, a menina que jogava futebol e iria ser lésbica quando crescer. A sapatão da sala de aula. A primeira pessoa LGBT a se assumir na turma da faculdade. E por aí vai. Sigo sendo sempre reconhecida como lésbica nos cantos. E, na vida, apenas me expresso. Visto as roupas que quero, falo como gosto, converso sobre o que me interessa. Minha arte é mais uma forma de expressão. Veja, as roupas que visto, os lugares que frequento, não informam diretamente “faço sexo e me relaciono com mulheres”, mas, dentro de todo o contexto, todas as minhas atitudes, escolhas e comportamentos são guiados por quem eu sou. E eu sou uma mulher lésbica. A minha arte deve ser encarada da mesma forma. Se analisada em conjunto com minhas atitudes e expressões diversas, acho que pode ser encarada como arte sapatão. Meu trabalho reflete um certo existencialismo que está dentro de mim, que não poderia existir se eu fosse outra pessoa, se eu não fosse exatamente eu, essa mulher lésbica nesse contexto que vivo. Um dia eu estava conversando com um colega artista, que é mais velho e mais experiente que eu. Estávamos diante de alguns quadros que eu havia pintado e ele me falava suas impressões. Ele olhou para um deles e disse “esse quadro é muito sapatão”. E aí mostrei outro, ele disse a mesma coisa. Em ambos, eram rostos de mulheres sendo representados. Mas qualquer pessoa pode pintar mulheres, né? O que fez essas imagens serem muito sapatão? Acho que é justamente nessa subjetividade, nessas sutilezas que falo sobre a temática LGBT ou sobre o que é ser uma mulher lésbica em meu contexto.
*Texto publicado originalmente na Edição #02
da Fearless Magazine, em abril de 2018
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