As casas de tijolos contrastam com as de acabamento feito pelo entorno do bairro de Pirituba. O asfalto quente pelo calor de outubro deixa o ar poluído ainda mais seco. No final de uma das ruas sem saída está a casa da rapper Luana Hansen. Conhecida por suas letras abertamente em defesa das mulheres, LGBT+ e população negra, a artista percorreu e ainda percorre um longo e sinuoso caminho em direção ao seu sonho na música. Única negra em família branca, filha mais velha de cinco irmãos, já vendeu bala no trem, serviu em balcão de padaria e mais uma infinidade de trabalhos, tudo para ajudar a mãe em casa. Enfrentou seu inferno pessoal quando caiu do tráfico para o consumo e se viu perdida por entre a sujeira da Cracolândia. Hoje, resgatada, espalha com a música suas vivências, na esperança de ser farol na vida de quem, como ela um dia, já se perdeu por entre as ruas de São Paulo.
Sua infância fora marcada pela falta do pai e pelas obrigações que quase sempre lhe roubavam das brincadeiras. Entre o concreto quente e a poluição onipresente da favela, recebeu de seu Tio Chico as primeiras notas que iriam colorir sua vida. Topou com a música popular brasileira ainda criança, Clara Nunes e Elza Soares foram algumas das que plantaram em seu peito as sementes que hoje germinaram em 17 anos de carreira. Entre uma batalha e outra, passou por inúmeros empregos, sempre buscando uma forma de aliviar o sofrimento que via a mãe passar. Forte sempre precisou ser, por isso mesmo, buscava no único presente que recebera do pai, seu nome, a energia necessária para continuar. Era, afinal, Luana, Deusa da Lua.
Foi, contudo, na adolescência que as coisas começaram a desandar. Não dá para saber muito como o processo chegou nesse ponto, já que muitos foram os fatores que podem ter contribuído. A entrada de Luana para o tráfico é, de certa maneira, uma espécie de “apogeu e declínio” da artista. A fase que começou aos 14 e durou até o início de sua vida adulta, permeou diversas áreas. Um grito por socorro de quem vê sua família sofrer por falta de oportunidades, foi a vontade de ser chefe e viver melhor e com dignidade, foi seu egoísmo ou talvez a falta de uma boa visão de mundo. Não dá para saber ao certo, talvez nada, talvez um pouco de cada.
Fato era que o crime levara Luana para seu ponto máximo de pressão. Começou levando a droga do traficante ao consumidor, na ascensão virou dona da biqueira, no declínio foi expulsa de casa e acabou na Cracolândia. Mesmo em toda dor que causou e sofreu durante esse período, mesmo no dia mais seco na biqueira de Luana, a música ainda estava ali, ainda tímida, germinando e pulsando sua melodia. Dos encontros do tráfico, nem todos foram ruins. Com a que já tinha no peito, encontrou outras fontes para enriquecer sua música. Conheceu Sabotagem, Cartel ZO, Negra Li, e assim se viu envolvida de corpo e alma com o RAP. Começou escrevendo as letras das músicas, com ajuda dos amigos, foi ao longo de 17 anos construindo sua carreira.
O espaço precisou ser aberto na porrada, lutando diariamente por ser uma mulher em um ambiente de maioria masculina, como é o RAP. Além disso, precisou vencer a lésbofobia e as dificuldades de ser uma artista independente. Dos grandes presentes dessa fase ficam os amigos e contatos que fez pelas quebradas da capital. Seu novo CD carrega essa história em suas músicas e em sua capa. Intitulado Favela, o álbum está sendo gravado dentro da Favela da Vila Elba, no extremo leste da cidade. O álbum vem carregado da história de Luana, compartilhando suas dores e indignações, busca poder transmitir conhecimento, fomentar debates, mudar visões de mundo e ensinar com seus erros e caminhos.
Seu público e seus fãs são a joia de sua coroa e tem mais espaço em sua vida do que os prêmios que já recebeu por suas músicas, como é o caso da faixa Ventre Livre de Fato, onde aborda o tema do aborto. Seu público é hoje o que sempre sonhou, o público pensante, como diz, daqueles que pegam suas letras para estudar e entender os temas abordados. Misturando suas vivencias na periferia, como mulher, como lésbica e como negra, Luana sente-se privilegiada em poder transitar por ambientes e espaços que raramente conversam entre si.
*Texto publicado originalmente na Edição #01
da Fearless Magazine, em dezembro de 2017
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