Todo mundo sabe que aquele argumento batido das identidades LGBTIA+ serem uma “modinha do século XXI” é furado, mas refutá-lo com exemplos concretos é um pouco difícil quando tanto da nossa vivência no passado foi apagada. Nessa lista, reunimos mídias que nos incluem em períodos bem distintos da história.
Eduardo II (1991)
Dirigido pelo ícone LGBTIA+ Derek Jarman, essa adaptação da peça de Christopher Marlowe sobre o rei britânico Eduardo II explicita o relacionamento do monarca com o seu “favorito” Piers Gaveston, que eventualmente levaria a sua deposição.
Embora historiadores discordem sobre a natureza da relação dos dois, o rei era extraordinariamente devotado a Piers, arriscando diversas vezes sua coroa e reputação para mantê-lo na corte, e a possibilidade de que eram amantes é uma das mais apoiadas pelos estudiosos da época.
Jarman não é tão ambivalente. Seu filme inclui cenas quentes entre os dois e toques anacrônicos que deixam claro a forma como o diretor vê essa história. Em uma cena, por exemplo, os soldados do exército de Eduardo II são transformados em ativistas pelos direitos LGBTIA+, carregando cartazes de efeito e gritando palavras de ordem.
Harlots (2019)
Histórias LGBTIA+ são fundamentais no reajuste histórico pretendido por “Harlots”, que, durante três temporadas, apresentou um novo olhar sobre o mundo da prostituição no Reino Unido do séxulo XVIII.
A série de Moira Buffini e Alison Newman entende como indivíduos marginalizados podem frequentemente se ver empurrados para o submundo que retrata, e faz questão de dar a eles a profundidade emocional e diversidade de arcos que merecem.
Dessa vontade surgem: o romance terno entre a nobre Isabella Fitzwilliam (Liv Tyler) e a prostituta Charlotte Wells (Jessica Brown Findlay); a paixão não correspondida de Nancy Birch (Kate Fleetwood) pela amiga Margaret Wells (Samantha Morton); e a amizade improvável entre a puritana Amelia Scanwell (Jordon Stevens) e o garoto de rua Prince Rasselas (Josef Atlins), unidos por amores indizíveis.
Maurice (1987)
Dos filmes inspirados em clássicos literários dirigidos por James Ivory e produzidos por Ismael Merchant entre o final dos anos 80 e começo dos anos 90, “Maurice” se destaca pela rara narrativa LGBTIA+ de época.
Inspirado em um livro de E.M. Forster, que foi publicado apenas postumamente porque o autor tinha medo de arruinar sua carreira com a obra, “Maurice” retrata a história de amor entre dois jovens na universidade de Cambridge.
O longa de Ivory explora de maneira mais contundente as pressões sociais e preconceitos enfrentados por pessoas LGBTIA+ nessa época e contexto social, externando assim a discussão largamente psicológica com a qual o livro de Forster se preocupava.
Eclipse de uma Paixão (1995)
No auge da sua primeira fase de estrelato, aos 21 anos, Leonardo DiCaprio encarnou um “enfant terrible” de outra época: o poeta Arthur Rimbaud, que viveu um lendário affair com o companheiro de profissão Paul Verlaine (David Thewlis, pré-”Harry Potter”) na década de 1870.
O filme da sempre contundente Agnieszka Holland não foge dos subtextos perturbadores do envolvimento entre os dois (na vida real, Rimbaud tinha apenas 16 anos quando o caso começou), passando por cima da ternura de outros romances cinematográficos para retratar dois homens terrivelmente criativos perdidos em seus próprios universos.
É um filme intenso, que se permite a complexidade dos seus biografados. Meio esquecido entre as peças de época do cinema dos anos 1990, merece ser redescoberto.
Gentleman Jack (2019)
Figura incomum para a sua época, Anne Lister era uma mulher lésbica que não escondia sua sexualidade. Embora assistida por uma posição social privilegiada, ainda é extraordinário que ela tenha conseguido viver uma vida tão plena no século XIX, incluindo um romance épico com outra nobre da sua região, Ann Walker -- as duas chegaram a morar juntas por alguns anos.
Em “Gentleman Jack”, o texto deliciosamente articulado de Sally Wainwright e a atuação de supernova de Suranne Jones (melhor do que todas as indicadas ao Emmy da sua categoria em 2020) dão vida a Lister como uma força da natureza, uma mulher de negócios astuta e impiedosa, e uma amante irresistível.
Orlando (1992)
Nunca o visual andrógino de Tilda Swinton foi usado de forma tão interessante quanto em “Orlando”, que adapta o livro de mesmo nome de Virgina Woolf sobre um nobre a quem a Rainha Elizabeth I pede que viva para sempre. Obedecendo ao comando, Orlando atravessa os séculos e, no meio do caminho, se torna uma mulher.
Embora mergulhado em fantasia, o “Orlando” da diretora Sally Potter é também riquíssimo em texto e subtexto queer (especificamente, trans). Com uma Elizabeth I interpretada pelo ícone gay Quentin Crisp e uma trama que transborda beleza e bom humor ao mostrar como a protagonista se encontra como mulher, é um dos longas mais ousados e intrigantes de sua época.
Retrato de uma Jovem em Chamas (2019)
O romance entre uma artista e sua retratada em uma mansão isolada na França, enquanto uma delas se prepara para um casamento arranjado. A diretora Céline Sciamma extrapola uma premissa simples em um filme verdadeiramente revolucionário.
“Retrato de uma Jovem em Chamas” coloca na tela imagens quintessencialmente femininas (e lésbicas) que raramente têm espaço nessa forma de arte. Além da vivência LGBTIA+, é notável a assertividade de Sciamma ao abordar o tema do aborto em um contexto histórico e íntimo, construindo com cuidado o seu filme a partir de beleza plástica e ousadia narrativa.
É o raro filme LGBTIA+ contemporâneo que, mesmo com um final trágico, se esquiva de clichês ofensivos para entregar uma história brilhantemente, inesquecivelmente humana.
Christopher and His Kind (2011)
Christopher Isherwood é uma das figuras literárias mais importantes para o movimento LGBTIA+. Nascido em 1904, o escritor abordou sexualidade em várias obras, mas sua autobiografia “Christopher and His Kind” se destaca pelo caráter documental e explícito.
A adaptação para a TV britânica do livro, estrelada por Matt Smith (“The Crown”, “Doctor Who”), mantém o espírito ousado do original, e fascina pelo retrato da vida LGBTIA+ na Alemanha pré-nazismo.
Conflitos políticos se misturam com emaranhamentos amorosos neste ambiente único, em que sombras familiares de homofobia internalizada também assombram os personagens.
Carol (2015)
“Maurice” e “O Preço do Sal”, o livro de Patricia Highsmith que inspirou “Carol”, são separados por décadas - mas suas publicações não são tão diferentes assim. Enquanto Forster engavetou sua obra LGBTIA+, que só foi vista depois da sua morte, Highsmith colocou a sua nas prateleiras usando um pseudônimo, só admitindo oficialmente a autoria décadas depois.
Em 2015, o livro virou um filme belíssimo pelas mãos do ícone LGBTIA+ Todd Haynes, que criou uma superfície sofisticada para contar a história do caso de amor entre duas mulheres na Manhattan dos anos 50.
Com uma Cate Blanchett resplandecente, e plena em impacto emocional, “Carol” se posiciona como um filme verdadeiramente revolucionário - especialmente por seu surpreendente final, uma das representações de amor em imagem mais inesquecíveis da história do cinema.
Pose (2018)
A época retratada por “Pose” foi decisiva para a luta pelos direitos LGBTIA+. Mais de uma década depois de Stonewall, pessoas queer começaram a ganhar espaço na cultura mainstream, mas seguiram enfrentando discriminações rotineiras e institucionais.
Prova cabal dessa desconexão entre cultura e realidade foi a forma como o governo dos EUA lidou com a HIV/AIDS, e a quantidade de desinformação que circulou sobre a doença pelo país. “Pose” atinge um nervo exposto ao justapor essa realidade desesperadora com a cultura vibrante do ballroom em Nova York.
“Pose” é tremendamente delicada na construção de seus personagens, uma história de triunfo e exuberância em meio às dificuldades. Era o conto de vitória LGBTIA+ que estava faltando na TV atual.
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